SHEIKHA MOZA E HAMLET: O EXÍLIO COMO RESSURREIÇÃO E CICATRIZ
Reflexões a partir da obra “Sheikha Moza, Hamlet e o Exílio”, do acadêmico Flávio Chaves
Existem destinos que parecem conversar no silêncio da História. Figuras que, mesmo separadas por séculos, geografia e cultura, emergem unidas por uma ferida comum: o exílio. Em “Sheikha Moza, Hamlet e o Exílio”, o escritor, jornalista e acadêmico Flávio Chaves coloca frente a frente um príncipe atormentado e uma mulher real que reergueu uma nação e dá a ambos a mesma pergunta: o que resta de nós quando somos arrancados do lugar que chamávamos, de chão?
Hamlet conhece um exílio sem fronteiras: não é expulso da Dinamarca, mas é desterrado da verdade, obrigado a respirar o ar viciado da mentira, da corrupção moral, da falência de princípios. No castelo de Elsinor, cercado por riqueza, pompa e sangue azul, encontra a pior pobreza: a perda de sentido. A morte do pai, o trono usurpado, a traição que se deita na cama da mãe — tudo o lança para fora de si mesmo. Hamlet vive o exílio espiritual, filosófico, ético. Está dentro do seu país, mas não lhe pertence; carrega o peso de uma consciência lúcida num mundo que teme a claridade. Sua ruína é íntima. Sua pátria não é o reino, mas aquilo que acredita. E, quando o real se torna insuportável, Hamlet é lançado ao mais árido desterro: o rompimento com a própria esperança.
Sheikha Moza, ao contrário, conhece o exílio físico. Aos cinco anos de idade, é arrancada de sua terra junto com a família, após a prisão de seu pai, o líder político Nasser bin Abdullah Al-Misned, perseguido e silenciado por divergências com o regime. Carregada ainda criança para o Líbano, cresce distante da própria pátria: sem o chão do deserto, sem a memória coletiva, sem os laços que definem uma origem. Enquanto Hamlet se perde dentro de si, Moza perde a terra concreta, a geografia do pertencimento.
Mas o que seria sua mutilação se torna força subterrânea. Ao retornar ao Catar aos dezoito anos, Moza não volta como vítima: volta como mulher formada, de entendimento amplo e visão longa. Reergue o nome de seu pai, reconstrói sua família, e, numa ironia histórica que só os espíritos altivos conseguem suportar, casa-se com o filho daquele que um dia fora opositor de seu pai. Não o faz por revanche, mas por reparação e destino. O exílio que a tirou do país a devolve à História, desta vez como protagonista de transformação.
Em vez da sombra, ela escolhe a arquitetura da luz. Participa da concepção de universidades, museus, instituições de ensino e pesquisa, programas sociais, estruturas culturais e de revitalização histórica. Move o Catar para o século XXI com um traço que não é apenas político: é civilizatório. Torna-se símbolo da mulher árabe contemporânea: ativa, culta, consciente, estrategista, diplomática. Sheikha Moza transforma o exílio de sua infância em fenda por onde entra o futuro.
Hamlet, sufocado, não encontra saída. Moza, ferida, constrói pontes. Ele sucumbe ao peso de um sistema que não reconhece a justiça; ela ergue um novo horizonte onde a ética pode respirar. Ele é tragédia. Ela é reconstrução.
E é essa contraposição, entre queda e ascensão, silêncio e palavra, hesitação e ação, que dá à obra de Flávio Chaves sua grandeza moral e filosófica. Pois se Hamlet representa o desterro da consciência, Sheikha Moza representa a reparação histórica. Se o príncipe denuncia o colapso da ética ao redor, a mulher árabe comprova que o poder pode ser instrumento de libertação, e não apenas de domínio.
Chaves conduz esse encontro com rigor e beleza. Não trata Hamlet como mera personagem, nem Moza como ícone distante, mas como reflexos humanos que atravessam a mesma cicatriz universal: a experiência de perder o lugar que se ama. O exílio aqui não é apenas geográfico, nem apenas psicológico, é condição profunda da alma arraigada ao tempo.
Hamlet cai porque o poder o corrompe por dentro e o paralisa. Moza se eleva porque o poder, ao tocar suas mãos, ganha linguagem, memória, educação, cultura e humanidade. Ele é o espelho trincado que denuncia o mundo. Ela é a lente que o reorganiza.
“Nenhum poder resiste à lucidez”, escreve Chaves. Essa é a coluna vertebral da obra. Hamlet é aquele que vê com nitidez demais, e, por isso, não suporta. Moza é aquela que viu o suficiente, e, por isso, decidiu agir. Ele é o exilado trágico que adoece sob o peso do pensamento. Ela é a exilada que transforma pensamento em ação civilizatória.
O livro lembra que toda época tem seus exilados, visíveis e invisíveis: os que perderam a terra, os que perderam a casa, os que perderam a fé no poder, os que perderam o nome, os que perderam a própria imagem diante do espelho. Mas também afirma que o exílio pode ser também gênese, travessia, purificação: lugar onde nasce a lucidez, onde a memória se fortalece, onde a identidade se refaz.
No fim, a obra deixa uma convicção silenciosa: quem carrega a palavra, nunca está totalmente desterrado.
Porque a palavra é o país secreto de quem perdeu o chão.E a lucidez, mesmo ferida, sempre encontra caminho.
Nesta matéria, fica clara a grandeza de “Sheikha Moza, Hamlet e o Exílio”: um livro que atravessa a literatura e a política, o Oriente e o Ocidente, a dor e a reconstrução. E que, com a elegância reflexiva de Flávio Chaves, recorda ao leitor que, em meio a quedas, ruínas, silêncios e degredos, ainda é possível recomeçar.
Hamlet é o anúncio da ferida.Moza é o anúncio da cura. O príncipe acusa. A mulher ergue. E o livro revela que, acima de destinos tão distintos, existe um mesmo traço unindo todos os que foram arrancados de si: é no exílio que descobrimos quem realmente somos.
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