A saudade que navega. Por Flávio Chaves
Por Flávio Chaves – Jornalista, poeta, escritor e membro da Academia Pernambucana de Letras. Foi Delegado Federal/Minc – É como se o tempo tivesse um rio só seu, lento, profundo, envolvente. A lembrança dela surge como espuma no espelho da água, frágil, efêmera, mas portadora do fulgor. Cada memória é uma gota que estala dentro do peito, uma nota intocada de saudade que se recusa a ir embora.
Lembro dos risos desconhecidos que ecoaram num instante, tão claros, tão íntimos, e invadiram o corpo inteiro como canção que se instala sem pedir licença. Era presença que escapava dos limites do tempo. E agora mora na memória, construída pela imaginação e pelo afeto, esse refúgio sereno onde ela vive, inteira, mesmo ausente.
Saudade é um trem lento que se recusa a partir. Ela desce vagarosamente pelos trilhos da lembrança e habitua o peito com a dor que é bonita, o silêncio que ecoa onde o riso dela deveria estar. A memória não se despede, ela se agarra, se faz baile lento no escuro do coração.
Há lugares onde tudo invariavelmente cala, o quarto onde cheirava jasmim, o corredor onde os passos dela pareciam gravar música no assoalho, mas bastava fechar os olhos e lá estava ela inteira, viva nas frestas da tarde, rindo com os cabelos a brilhar no sol. Esses fragmentos são flechas que nos atravessam de leve, só para mostrar que o amor continua pulsando, mesmo quando as mãos não alcançam.
É um rio e um mar ao mesmo tempo, os afluentes da lembrança correm pelo corpo, e quando se juntam, se tornam oceano, profundo, impiedosamente belo. E nesse mar navego, às vezes a reboque da saudade, outras comandando os remos com força, lembrando que amar é também aprender a soltar.
Amor não aprisiona. Ele vive onde respira. Quando a gente ama de verdade, deixa livre, mas guarda, no fundo da alma, o espaço onde aquele amor repousa e resiste. Porque tudo o que foi amado com verdade não se perde, transforma-se em eternidade íntima. Não morre. Permanece. Respira devagar dentro de nós, mesmo que em silêncio.
E se um dia ela voltar, ou se for ao contrário e for eu que volte, que venha com o riso guardado, com a história inteira pulsando na pele. Porque há afetos que não envelhecem nunca. Eles se tornam invisíveis, mas continuam vivos. Como um perfume no escuro. Como um rio no deserto. Como quem volta devagar, e ainda encontra o coração aceso, esperando, intacto, com a porta aberta.
Share this content:

Publicar comentário