O tempo sentenciado de lembranças. Por Flávio Chaves
Por Flávio Chaves – Jornalista, poeta, escritor e membro da Academia Pernambucana de Letras. Foi Delegado Federal/Minc – A casa amanheceu molhada por dentro. Não chovia lá fora, e ainda assim, tudo pingava. As paredes exalavam umidade antiga, como se guardassem soluços dentro dos tijolos. Ele caminhava por entre os cômodos com os pés descalços, e cada passo era um afundar lento, como quem pisa em lembranças feitas de lodo e perfume.
Nenhuma carta, nenhum bilhete, nenhum grito. O que ficou foi um silêncio que lateja. Não há som mais ensurdecedor do que o que vem depois do último “fica”. Ele, que nunca soube chorar alto, agora transbordava pelos poros, pelas frestas, pelos móveis que já não sabiam se eram abrigo ou ruína. A alma dele, ah, a alma, estava feita de maré cheia, dessas que invadem sem pedir licença e arrastam o que encontram. O sorriso, antes pousado no rosto como passarinho, afogou-se. E afogar é verbo que, nele, sempre conjuga saudade.
O cheiro dela ainda habitava o lençol. Não como presença, mas como sentença. Era aroma que não consola, mas condena. Havia, também, o toque. O toque que, por não mais acontecer, incendiava a pele com a lembrança da ausência. O corpo dele era agora um templo incendiado, e cada centímetro clamava por vestígios do que foi liturgia a dois.
Ele não dizia. Ele era. O luto ali não se anunciava com vestes pretas ou flores murchas. Era luto de quem se esqueceu como se caminha em linha reta, de quem tropeça nas próprias saudades, de quem acorda no meio da noite com o nome do outro entalado entre os dentes. E mastiga.
A cidade seguia. A vida fazia seus ruídos, e até o sol ousava brilhar, às vezes. Mas nele, tudo era crepúsculo. Não por escolha, mas por maldição. Era um estar-no-mundo sem estar-em-si. Como personagem de romance inacabado, ele vagava com olhos de papel amassado e coração em carne viva.
Em suas mãos, o tempo era coisa que escorria com raiva. Nenhuma fotografia conseguia capturar o que doía. Era dor que se escondia até na luz. E os olhos dele? Dois poços fundos, cheios de ecos. Quem olhasse com atenção, veria ali não um homem, mas uma febre. Uma combustão lenta. Uma chuva que se apaixonou por dentro e esqueceu como se seca.
Há quem diga que ele ainda sorri, de vez em quando. Mas é engano. O que há é um músculo que, por hábito, se move. O riso, esse se perdeu naquela manhã em que a alma se encharcou e os móveis começaram a boiar em silêncio. Desde então, tudo é náufrago, até o espelho.
E o nome dela, que não se pronuncia, virou palavra interditada. Mas cada sílaba vive entre as pausas das suas frases. Cada letra molda o ar que ele respira, como uma sentença de vento.
Ele sobrevive. Como sobrevivem os que carregam dentro de si um vendaval que não cessa, e ainda assim, esperam.
Esperam que, um dia, alguém compreenda o idioma das tempestades.
E o abrace.
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