Quando a saudade é um corpo. Por Flávio Chaves
Por Flávio Chaves – Jornalista, poeta, escritor e membro da Academia Pernambucana de Letras. Foi Delegado Federal/Minc – Ninguém soube ao certo quando ele começou a desaparecer, se foi numa terça de silêncios ou numa madrugada em que o espelho recusou o reflexo, mas desde então, caminharam suas mãos com a delicadeza de quem segura um relicário feito de cinzas. O nome dela, não o nome propriamente dito, mas aquilo que pulsava por detrás das sílabas, ainda era uma brasa acesa sob as camadas frias do tempo, ardendo em segredo como as cartas jamais enviadas ou as juras murmuradas aos móveis, quando a casa toda já dormia.
Ele andava por entre os objetos com a reverência de quem pisa no chão de um templo antigo, e cada coisa, a xícara, o lenço, a sombra projetada da cadeira vazia, lhe devolvia fragmentos de um passado que não se deixava enterrar. Era como viver num país estrangeiro onde todas as placas apontavam para dentro dele mesmo, e nenhuma saída era segura. A solidão tinha corpo, perfume, idade. Tinha voz. Às vezes, sussurrava em francês. Às vezes, apenas tossia no fundo do peito, como uma ausência asmática.
Os vizinhos, discretos na sua compaixão inconsciente, diziam que ele falava sozinho. Mas o que não sabiam é que as palavras tinham destino, mesmo quando ninguém as ouvia. Cada frase que ele deixava escapar era uma oferenda ao vazio, uma forma de não ser completamente esquecido por quem o esquecera. A memória, para ele, era uma casa em ruínas que ainda tinha cheiro de pão quente e som de passos descalços. Ele não queria reconstruí-la, apenas habitar seus escombros com dignidade.
A cidade continuava, indiferente, como continuam os rios mesmo quando a ponte desaba. O relógio da praça seguia marcando horas que já não pertenciam a ninguém. E ele, com a alma costurada por dentro, descia as ruas como quem procura algo que não pode ser nomeado, apenas sentido como se sente a febre antes do delírio ou a vertigem antes do abismo.
Não havia fotografia dela nas paredes. Apenas um lenço azul esquecido sobre o espaldar de uma cadeira, e naquele tecido dormiam todos os domingos que jamais voltariam. Ele não chorava. Seus olhos haviam se tornado desertos onde as lágrimas evaporavam antes de cair. Mas havia noites em que a lua, ao bater nas janelas, parecia reconhecer nele uma dor gêmea.
Amava com a intensidade de um exilado que sonha com a terra natal sem nunca mais pisá-la. E esse amor, que não gritava, que não pedia, que não suplicava, era o que o mantinha de pé. Porque há dores que sustentam mais do que alegrias, e há presenças tão ausentes que se tornam eternas.
Naquela casa onde a chuva não cessava, mesmo quando o céu era límpido, ele seguia existindo como um verso maldito de um poeta esquecido. E quem por ali passasse, se tivesse coração antigo e ouvidos de silêncio, talvez ouvisse, entre uma goteira e outra, o som inconfundível de um homem que ainda ama o que já partiu.
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