Gazeta Pernambucana – Editorial: A Dinastia dos Mandatos
Nenhum poder é mais perigoso do que aquele que, uma vez conquistado, se torna herança de sangue. O Brasil assiste, há décadas, a um fenômeno corrosivo que atravessa partidos, ideologias e geografias: a transformação de mandatos públicos em feudos familiares. Como numa velha monarquia disfarçada, vemos pais, filhos, esposas, irmãos, netos e sobrinhos se revezando no poder, como se a vontade popular fosse um negócio de família. A política converte-se, assim, em herança, e não em conquista ética ou mérito público.
Essa prática banalizada, que alguns ainda tentam justificar como “tradição”, representa, na verdade, a perpetuação de uma lógica aristocrática disfarçada de democracia. Onde deveria haver alternância, há sucessão. Onde se esperava renovação, há clones do velho poder. E não se trata de mera coincidência ou afinidade política: trata-se de estratégia deliberada, desenhada para que um mesmo núcleo controle, em cadeia, os orçamentos, as decisões e os votos. É o sangue substituindo a competência; é o sobrenome abafando o projeto.
E o mais estarrecedor é o grau de naturalização com que isso é aceito. Um deputado lança o filho à reeleição como se inscrevesse o herdeiro em um clube privado. Um prefeito prepara a esposa como candidata como quem repassa a escritura da casa. Um senador anuncia o neto como “nova liderança”, quando tudo o que há de novo é o número na certidão. E o povo, hipnotizado pela repetição dos nomes, vai cedendo mais uma vez sua esperança a quem se parece com o passado, não com o futuro.
É preciso se posicionar com veemência contra essa lógica perversa. Que os eleitores examinem com lupa os discursos de continuidade familiar, desfaçam as amarras do servilismo hereditário e libertem a política do domínio das capitanias. Cada voto deve ser um ato de ruptura com esse ciclo vicioso, não de submissão à genealogia do poder.
A democracia não foi feita para cultivar árvores genealógicas, mas para fazer florescer ideias. E a política, se quiser de fato servir ao povo, precisa deixar de ser quintal de família. O Brasil precisa de representantes, não de herdeiros. De cidadãos engajados, não de dinastias travestidas de partidos.
Chegou a hora de cortar o cordão umbilical entre o mandato e o sobrenome. Que as urnas não sejam berçários da repetição, mas trincheiras da mudança. Que o povo, enfim, desmonte os castelos da política hereditária, e reconstrua, com consciência e coragem, o espaço da verdadeira representação.
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