Vídeo: Enquanto o Brasil se pergunta quem matou Odete Roitman, a mulher da sandália partida e pregada com prego morre todo dia sem audiência. Por Flávio Chaves

Por Flávio Chaves – Jornalista, poeta, escritor e membro da Academia Pernambucana de Letras. Foi Delegado Federal/Minc  –  Hoje, uma nação inteira se prepara. Desde cedo, nas ruas, nas redes, nas conversas de esquina e nos corredores dos escritórios, todos querem saber a mesma coisa: quem matou Odete Roitman? A televisão reprisa, os jornais relembram, os programas de auditório especulam, e até quem não assistiu a novela se vê engolido por esse mistério que virou folclore cultural. Um país inteiro envolvido numa trama fictícia, se perguntando, com ares de suspense coletivo, quem foi o responsável pela morte da vilã. A mídia abraça esse enigma com dedicação cirúrgica, repete cenas, entrevista atores, promove concursos, reacende o interesse pelo capítulo final como se fosse a própria verdade do Brasil sendo revelada numa sexta-feira à noite. E tudo isso seria apenas um exercício nostálgico de memória televisiva, não fosse o contraste brutal com a realidade que se impõe do lado de fora das telas.

Porque enquanto milhões tentam adivinhar quem matou Odete Roitman, ninguém parece interessado em descobrir quem matou a dignidade de uma mulher que, sem ter como comprar outra sandália, atravessa um prego no chinelo rasgado para continuar caminhando. Essa mulher, que aparece num vídeo como um retrato da miséria extrema, não precisa de novela para viver o drama. A roupa que veste é doada, a comida que chega ao seu prato é sobra de outras casas, e o futuro, esse já lhe foi negado antes mesmo de nascer. Ninguém quer saber quem matou a possibilidade dela comprar um par novo de chinelos. Ninguém investiga quem matou o acesso à saúde que nunca lhe foi dado. Ninguém aponta o dedo para os verdadeiros culpados por essa morte lenta, diária, sistemática — morte da dignidade, do sonho, da oportunidade.

Enquanto discutimos um crime de ficção, ignoramos os crimes reais cometidos todos os dias contra milhares de brasileiros invisíveis. Quem matou a criança que morreu de fome na periferia? Quem matou o velho que morreu esperando por atendimento num hospital público? Quem matou o estudante que desistiu da escola porque o ônibus nunca passava? Quem matou a mãe que chorou porque o gás acabou e não havia como cozinhar o pouco que tinha? Quem matou a chance dos que vivem no abandono estatal, nas promessas rasgadas, nos programas interrompidos, nas verbas desviadas?

Essa mulher da sandália pregada é símbolo de tudo isso. Ela é personagem de uma novela que não tem audiência, que não ganha reprises, que não emociona apresentadores de televisão. Sua dor não vira pauta, não vira bordão, não é lembrada com charme ou nostalgia. Sua dor é incômoda, suja, difícil de assistir. É o tipo de história que preferem esconder com cortinas de entretenimento, com cortinas de fumaça, com mistérios que não ameaçam a estrutura de ninguém.

A pergunta que precisamos repetir, não em tom de brincadeira, mas como denúncia, é: quem matou a chance dessa mulher viver com o mínimo? Quem matou o Estado quando ele escolheu cuidar de poucos e abandonar muitos? Quem matou a solidariedade que virou esmola? Quem matou o direito de sonhar?

A morte de Odete Roitman mobiliza o país, mas o assassinato da esperança continua sem manchete. Porque não é interessante, porque não dá ibope, porque não move patrocinadores.

Mas para quem ainda sente, para quem ainda se importa, para quem ainda carrega um pedaço de humanidade no peito, fica o incômodo. Fica o apelo. Fica o chamado.

E você? Vai continuar perguntando quem matou a vilã da novela ou vai começar a perguntar quem está matando, dia após dia, o futuro do nosso povo?

Veja o Vídeo:

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