BIENAL DE PERNAMBUCO : ONDE A MATÉRIA-PRIMA É O LIVRO. Por Flávio Chaves

A XV Bienal Internacional do Livro de Pernambuco celebra 30 anos de história e presta homenagem a Josué de Castro, reafirmando o poder da leitura como força civilizatória.

Por Flávio Chaves – Jornalista, poeta, escritor e membro da Academia Pernambucana de Letras. Foi Delegado Federal/Minc  – A XV Bienal Internacional do Livro de Pernambuco avança com vigor em Olinda, reafirmando o valor do livro como uma das últimas resistências do pensamento diante do ruído contemporâneo. Mais do que uma feira, é uma celebração da consciência, uma convocação à escuta do verbo, uma casa erguida com o material mais antigo e mais essencial da civilização: a palavra.

Em tempos em que a velocidade suplanta a compreensão e a informação se despe de sentido, é comovente observar milhares de pessoas reunidas em torno de algo tão simples e tão poderoso quanto um livro. Como escreveu Jorge Luis Borges, “de todos os instrumentos do homem, o mais surpreendente é, sem dúvida, o livro: os outros são extensões do corpo; o livro é uma extensão da imaginação e da memória.” É essa extensão de memória e imaginação que a Bienal, há trinta anos, vem defendendo como patrimônio coletivo e espiritual.

A lei que a reconheceu neste ano como Patrimônio Cultural Imaterial do Recife é mais do que um gesto de reconhecimento; é uma declaração pública de que a leitura continua sendo um ato de civilização. Pernambuco, terra de poetas e rebeldes, reafirma-se como guardião da linguagem, como território em que o verbo ainda tem peso e responsabilidade.

O homenageado desta edição, Josué de Castro, representa de forma exemplar a fusão entre ciência, literatura e humanismo. Médico, geógrafo, pensador universal, Josué entendeu antes de muitos que a fome não é fenômeno biológico, mas político. Autor de Geografia da Fome, traduziu em palavras a dor coletiva de um povo, convertendo a pesquisa em consciência, e o diagnóstico em denúncia. Em sua obra, a escrita não se limita a descrever o mundo, mas tenta transformá-lo. Por isso, seu nome ressoa com tanta propriedade neste momento em que o Brasil parece necessitar de intelectuais que escrevam não apenas para explicar, mas para agir.

“Enquanto houver um homem faminto, a civilização será uma farsa”, escreveu Josué. Essa sentença resume a coragem ética de quem fez da palavra um gesto de combate e da leitura uma forma de resistência. Honrar Josué de Castro na Bienal é reconhecer que a literatura, em sua essência, é também uma forma de justiça.

A Bienal é um espelho do tempo. Em seus corredores, o leitor reencontra o poder da lentidão e do silêncio. Kafka dizia que “um livro deve ser o machado que quebra o mar gelado dentro de nós”. Essa é talvez a definição mais pura da experiência literária: o livro como ruptura interior, como revelação de uma verdade que dorme sob o cotidiano. Ler é, portanto, um ato de despertar.

A literatura, como lembrava Italo Calvino, “é a prova de que a vida não basta”. E de fato, o que seria da existência sem o refúgio das palavras, sem o direito de sonhar por meio de vozes alheias? A Bienal convida o público a retomar esse gesto primitivo e nobre: abrir um livro e se permitir habitar outras consciências. Ler é atravessar fronteiras sem precisar de passaporte. É o exercício mais íntimo e mais livre que a humanidade inventou.

A força do livro não está apenas no que ele contém, mas no que provoca. Cada leitor o reescreve à sua maneira, completando a obra com sua própria experiência. Roland Barthes dizia que “a leitura é o espaço onde se encontram o escritor e o leitor, sem que nenhum deles se anule”. É esse encontro que a Bienal celebra: o diálogo entre o autor que oferece e o leitor que reinventa.

Na paisagem ruidosa da cultura digital, o livro permanece como o objeto mais silencioso e mais subversivo que existe. Ele não impõe sons nem imagens; propõe mundos. “A leitura é uma amizade”, escreveu Marcel Proust. E talvez seja esse o maior legado da Bienal: lembrar que o livro, antes de tudo, é uma forma de afeto.

Josué de Castro, Borges, Kafka, Calvino, Proust — todos convergem num mesmo ponto: a crença de que a palavra é o instrumento pelo qual o homem tenta compreender sua condição. A Bienal é a celebração dessa tentativa, desse esforço milenar de dar sentido ao indizível.

E quando as luzes do evento se apagarem, quando os estandes forem desmontados e o burburinho se calar, restará o essencial: o leitor com seu livro. Ali, sozinho, mas acompanhado por séculos de pensamento, ele perpetua a Bienal em silêncio, cumprindo o mais belo dos gestos humanos: ler.

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