EDITORIAL – Entre rótulos e realidades: o que se esconde por trás das garrafas adulteradas
Editorial – Gazeta Pernambucana
Nos últimos dias, o Brasil tem assistido a um surto inquietante: bebidas alcoólicas adulteradas com metanol provocaram intoxicações graves, mortes e um estado geral de comoção. As autoridades se mobilizam, fiscais invadem depósitos, bares são interditados, e o noticiário se ocupa, como deve, da tragédia sanitária que se anuncia. Mas é preciso, com serenidade e espírito crítico, perguntar: por que agora?
Não se trata aqui de negar a gravidade do que está diante de nós. Pelo contrário. O que preocupa é justamente a coincidência entre o surgimento repentino do escândalo, sua propagação veloz na opinião pública e o momento político que atravessamos.
Com a retórica de antagonismo internacional, que por tanto tempo serviu de moldura para discursos sobre soberania e resistência, perdendo força após encontros simbólicos em tribunas multilaterais, o foco parece ter voltado para dentro. E, como num passe ensaiado, o inimigo muda de endereço: de fora para dentro, da geopolítica para a geografia urbana.
É o bar da esquina, o comerciante informal, o atravessador sem nota fiscal que agora encarnam o novo perigo. Não há dúvidas de que crimes foram cometidos. Mas a narrativa construída em torno disso, envolta em operações relâmpago, pronunciamentos oficiais e discursos de indignação, pode servir a propósitos que vão além da saúde pública.
Há algo de curioso no sincronismo dos fatos: justo quando os olhos começavam a voltar-se novamente para as contas públicas, os contratos suspeitos, a lentidão nas entregas estruturais e as promessas ainda não cumpridas, uma nuvem densa se instala sobre o debate, e o centro das atenções se desloca.
Não há acusações neste texto. Há perguntas.
Estaria o escândalo das bebidas sendo usado, consciente ou não, como instrumento de redirecionamento do olhar coletivo? Estaríamos diante de uma nova forma de distração cuidadosamente construída, onde o temor legítimo da população serve como pano de fundo para o avanço silencioso de interesses mais profundos?
A história brasileira tem larga experiência em fabricar emergências que ofuscam verdades mais incômodas.
Que se apurem os fatos, que se puna com rigor os responsáveis. Mas que também se mantenha aceso o farol da vigilância crítica. Porque, às vezes, o que mais intoxica não está no copo, mas na narrativa.
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