Eu espero a tua volta. Por Flávio Chaves
Por Flávio Chaves – Jornalista, poeta, escritor e membro da Academia Pernambucana de Letras. Foi Delegado Federal/Minc – Ainda deixo a janela entreaberta, não por mero hábito, não por distração ou rotina automática dos dias, mas por essa teimosia delicada de quem insiste em abrir uma fresta no tempo para que a alma, exausta de tanto recordar, encontre um espaço por onde possa respirar tua ausência e, quem sabe, receber tua volta. Há um ritual oculto nessa abertura silenciosa, um gesto sagrado que repito como quem reza sem palavras, como quem oferece o próprio peito ao vento, esperando que nele chegue o perfume da tua pele, o sussurro da tua voz, o eco mais tênue do teu nome se misturando à brisa, como se a natureza soubesse da tua falta e conspirasse a meu favor com pequenas epifanias. Cada fim de tarde se tornou, desde a tua partida, um altar improvisado onde acendo velas invisíveis e repouso o peso do meu silêncio, essa dor mansa e contínua que aprendeu a me habitar sem destruir, que queima como uma febre antiga, mas nunca arde o suficiente para apagar o que de ti ainda resta.
Aquela cadeira onde costumavas sentar, corpo sereno e olhar perdido entre as páginas de um livro e os labirintos da tua própria alma, permanece no mesmo lugar, como se esperasse também, como se o móvel tivesse aprendido a amar. Ali, onde tua voz soava baixa, quase em segredo, como se temesses acordar os anjos ou perturbar a santidade da poesia, agora repousa o eco do que foste, a lembrança sonora do teu riso translúcido, aquele riso que parecia vir de um lugar onde as palavras não existem, onde só a luz fala. Tua risada, leve como cristal e intensa como fogo, carregava um dom que poucos têm: ela não apenas iluminava o teu rosto, mas incendiava a atmosfera, como se uma divindade tivesse acendido uma vela dentro da tua boca apenas para guiar os perdidos que, como eu, se encontravam ao te olhar. E os teus olhos, ah, teus olhos. Eles não miravam, eles mergulhavam. Eram abismos dóceis, poços de silêncio onde o mundo se afogava em mistério.
Havia neles uma profundidade que fazia o tempo perder o fôlego, uma espécie de eternidade quieta que calava o barulho do mundo. Quando me fitavas, havia um estremecimento no ar, como se os ponteiros do relógio se ajoelhassem e o universo suspendesse a respiração para não interromper o instante. E nesse olhar que durava além do olhar, que transcendia o visível, nós dois deixávamos de ser dois, dissolvíamo-nos em um só sentimento feito de espanto, como se fôssemos a mesma alma repartida em dois corpos frágeis, unidos apenas pela beleza do que não se pode explicar.
Mesmo depois da tua partida, que não sei se foi geográfica ou espiritual, concreta ou mística, a casa permaneceu impregnada de ti. As paredes continuam te ouvindo. Às vezes o chão geme de um jeito que parece ecoar teus passos ausentes. Há noites em que a porta range e penso, por um instante febril, que és tu, chegando com aquele teu riso aceso, largo, do tamanho da lua cheia. E no jardim, há flores que desabrocham fora do tempo, como se tua presença invisível ainda lhes soprasse os segredos da primavera. Aqui, o tempo já não se mede em minutos, ele se derrama em memórias. Cada perfume esquecido que volta, cada música que toca quando estou distraído, é um recado teu, um bilhete etéreo assinado com saudade.
Dizem por aí que é loucura esperar o que não tem data, que é insano cultivar esperanças onde só há silêncio. Mas o que sabem eles do que é amar com a alma inteira, do que é entregar o corpo ao vazio com a fé dos que crêem no impossível? Amar, meu amor, não é apenas dividir uma cama ou uma rotina, é continuar acendendo a luz para quem partiu, é manter o café quente como se o tempo pudesse recuar, é escrever cartas que talvez nunca serão lidas, mas que ainda assim precisam ser escritas porque carregam o que é mais urgente em mim. Amar é viver num fuso horário descompassado, onde a saudade dita os segundos e o coração não respeita os calendários.
Eu te espero. Não com desespero, não com pressa, mas com essa espécie de fúria tranquila que só os que amam profundamente conhecem. Essa espera que não grita, mas permanece, que arruma as gavetas como quem organiza as lembranças, que ajeita travesseiros como se ainda fosses deitar ali, que fala contigo mesmo quando não há resposta, porque há amor que não precisa de retorno para existir. Amar é saber que mesmo que os corpos se percam, há uma presença que continua caminhando dentro da gente, uma respiração compartilhada no invisível. Há palavras que nunca foram ditas, mas que já nasceram entendidas. Há olhares que continuam nos vigiando, mesmo depois que os olhos se fecharam para sempre.
Tu és o que me move, o que me revela, o que dá sentido ao que ainda sou. O que os olhos veem, o tempo apaga, mas o que o coração sente, esse o tempo aprende a respeitar. Por isso, enquanto houver brisa, enquanto o silêncio continuar sussurrando teu nome, enquanto a janela seguir aberta como um gesto de fé, eu estarei aqui. Esperando.
E quando fecho os olhos, meu amor, tu já passeias no voo dos meus sonhos. E pela fresta por onde entra o vento, já vislumbro a eternidade da tua volta. Eu te amo com esse desassossego sagrado que só conhece quem vive uma ausência povoada. Vem. Vem depressa. Porque teu sonho, eu carrego comigo. E dentro de mim, ainda há um mundo inteiro que só respira quando te imagina voltando.
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