GAZETA PERNAMBUCANA – EDITORIAL: A eleição sequestrada pelas dinastias e o povo à deriva e esquecimento
Piratas do poder transformam a democracia em capitania familiar, navegando entre heranças, manipulação emocional e o naufrágio silencioso da cidadania.
Numa democracia ainda em busca de maturidade, assiste-se, com desconcertante naturalidade, à repetição de um enredo herdado do período colonial, o poder que se transfere por sobrenome, o voto que consagra clãs, a eleição transformada em ritual de continuidade familiar. É o tio que passa o bastão ao sobrinho, a irmã que herda o espólio do irmão, o neto que adota o nome político do avô como se herdasse não só um capital simbólico, mas a própria cadeira no parlamento.
Não se trata de exceção, mas de prática disseminada, e cada vez mais profissionalizada, onde a lógica do sangue suplanta o princípio da representatividade. Esse fenômeno, que poderíamos chamar de política hereditária, não é apenas um desvio da democracia, é sua paródia mais cruel. Enquanto os sobrenomes circulam em círculos fechados, o povo permanece estagnado, afogado no esquecimento.
A perpetuação familiar do poder corrói o espírito republicano e transforma o pleito eleitoral em simulação de escolha. Herda-se a máquina, o prestígio, os favores acumulados. Cria-se uma política de pertencimento, em que os laços familiares valem mais que propostas, e a continuidade é vendida como segurança. Os eleitores, seduzidos por nomes familiares, depositam sua confiança não em projetos de sociedade, mas em fantasmas de memória.
Reatualiza-se, sob nova estética, o velho patrimonialismo, agora, ao invés de fazendas e escravos, herdam-se prefeituras, mandatos e orçamentos públicos. Alexis de Tocqueville, ao alertar para o despotismo suave das democracias, talvez previsse esse cenário em que a liberdade formal convive com a concentração invisível do poder. Robert Michels, com sua “lei de ferro das oligarquias”, diagnosticou o que hoje vemos, mesmo regimes democráticos tendem a se converter em domínios de elites estáveis. Aqui, no entanto, o mecanismo se dá à vista de todos, e com voto popular.
O marketing emocional desses grupos é meticuloso. Vendem continuidade como estabilidade, tradição como confiabilidade, e afeto como identidade política. O eleitor é convencido de que votar no herdeiro é preservar conquistas. A ausência de debate programático é preenchida com biografias emotivas, fotos de família e uma retórica de pertencimento.
Mas o que está em jogo não é apenas o direito de um familiar suceder outro, é a captura do espaço público por um projeto privado de poder. Não há democracia onde não há alternância. Não há representatividade quando o poder circula entre os mesmos. Não há república onde sobrenomes pesam mais que ideias.
Como dizia Aristóteles, a cidade justa é aquela orientada para o bem comum, e não para o bem de uma casa. E como lembrava Confúcio, “aquele que governa desejando o bem será seguido pelo povo”. O que vemos é o oposto, aqueles que governam desejando manter seu nome sobre o povo, mesmo que isso custe a verdade, o progresso e a justiça.
Estamos diante de capitanias eleitorais que se modernizaram, mas não se transformaram. A roupa mudou, o discurso mudou, mas a lógica permanece, manter o poder em casa, como um bem de família. O povo, reduzido à função de ratificador, continua excluído das decisões. Navega-se um barco conduzido por piratas hereditários, enquanto a maioria afunda na indiferença e na escassez.
É tempo de romper esse ciclo. O voto deve ser ferramenta de ruptura, não de conservação de dinastias. É preciso que o eleitor veja além do nome, além do rosto conhecido, além da promessa confortável. Só há democracia real onde há disputa real de ideias. De outra forma, estaremos apenas simulando liberdade dentro de uma gaiola de ouro familiar.
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