Recife converte sua história em tela a céu aberto com Projeto de Megamurais. Por Flávio Chaves

Por Flávio Chaves – Jornalista, poeta, escritor e membro da Academia Pernambucana de Letras. Foi Delegado Federal/Minc  –  O centro histórico do Recife, berço da colonização portuguesa no Nordeste, está passando por uma transformação silenciosa e monumental. Nas fachadas de edifícios secularmente envelhecidos, uma nova camada de história está sendo pintada, não com a têmpera do passado, mas com a tinta vibrante da contemporaneidade. A iniciativa é o projeto Megamurais, uma política pública de urbanismo criativo que está convertendo a cidade em uma galeria de arte a céu aberto, fundindo patrimônio material e imaterial em grandes painéis de expressão cultural.

Articulada pelo Gabinete de Inovação Urbana (GIURB) no âmbito do programa Recentro, a ação vai além do embelezamento estético. Trata-se de uma estratégia planejada de requalificação urbana que utiliza a arte como ferramenta de ativação social e econômica. Até o momento, o investimento público direcionado à iniciativa soma aproximadamente R$ 675 mil, recursos que financiaram a conclusão de nove murais e a execução de mais dois, com cada obra recebendo um aporte individual de R$ 75 mil, conforme estabelecido em edital público.

A face mais emblemática desta revolução pictórica é o mural “Nanã de Naná”, do artista pernambucano Manoel Quitério. Com imponentes 256 metros quadrados, a obra recobre a lateral do Edifício Aliança, no coração do Recife Antigo. Mais do que uma pintura, é uma narrativa visual que homenageia o genial percussionista Naná Vasconcelos, celebrando as matrizes afro-brasileiras, a espiritualidade ancestral e a potência rítmica que consagrou o músico mundialmente.

A escolha do local é carregada de simbolismo: foi precisamente naquela região que, por anos, Naná deu início ao Carnaval do Recife, num ritual que sincronizava a cidade em um único compasso. A obra de Quitério não apenas imortaliza esse legado, mas também marca um precedente significativo: é a primeira intervenção artística de tal magnitude em um conjunto arquitetônico tombado como patrimônio histórico da cidade, sinalizando uma visão que entende a preservação não como mumificação, mas como um diálogo constante entre eras.

Os Megamurais, no entanto, não se restringem a um único ícone. O edital que os rege foi concebido como um mecanismo duplo: é, ao mesmo tempo, um incentivo substantivo à cadeia produtiva das artes visuais e um catalisador para a revitalização de espaços urbanos degradados. Ao ocupar empenas cegas e fachadas ociosas, esses gigantes coloridos geram engajamento comunitário, ressignificam a paisagem e fortalecem o sentimento de pertencimento e identidade cultural na população.

Este movimento ganha contornos ainda mais estratégicos com o reconhecimento do Recife como “Cidade Criativa da Música” pela UNESCO. Os murais funcionam como uma tradução visual dessa identidade sônica única, materializando em formas e cores o espírito coletivo e espiritual que pulsa na soundscape pernambucana. A expansão planejada deste circuito artístico promete consolidar a política não como um projeto pontual, mas como um dos programas de arte urbana pública mais visionários e bem-sucedidos do país, provando que as paredes da cidade podem ser as páginas de sua história viva.

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