GAZETA PERNAMBUCANA – EDITORIAL: Finados, o peso do silêncio e a eterna presença dos que se foram
Onde a saudade se faz verbo e a memória, eternidade.
Não é apenas uma data no calendário. É uma topografia interior, uma paisagem de ausências que se faz presente. O Dia de Finados não se anuncia com estrondo, mas com um silêncio. Um silêncio denso, povoado, que desce sobre nós como um véu de fina algodão, através do qual o mundo de lá e o mundo de cá se entrelaçam em fios de saudade e memória.
Sua gênese, no Ocidente, mergulha as raízes na umidade dos antigos mosteiros beneditinos. Foi no século X que o abade Odilo de Cluny instituiu a comemoração de todos os fiéis defuntos, um dia após a celebração de Todos os Santos. Era o reconhecimento tácito de que a santidade convive com a humanidade, e que a comunidade dos vivos tem uma dívida de oração com a comunidade dos que partiram. A data, desde seu nascimento, carrega esse duplo movimento: erguer os olhos para o céu, sem deixar de sentir a terra sob os pés, terra essa que um dia nos receberá.
Neste dia, o luto e a memória não são opostos, mas irmãos siameses. O luto é a ferida, a cicatriz que lateja. A memória é o bálsamo, o sangue que ainda circula por veias rompidas. Lembrar não é um ato de fuga da dor, mas uma forma complexa de presença. É no ato de rememorar que os que se foram reassumem, por instantes fugidios, sua corporeidade em nosso espírito. Eles voltam no cheiro de uma comida, na curva de uma canção, no modo peculiar como a luz da tarde incide sobre uma cadeira vazia. A homenagem, portanto, é essa invocação. Ela atravessa o tempo e a cultura popular: das velas acesas nos cemitérios europeus, que iluminam o caminho dos mortos, ao copo d’água deixado sobre o altar caseiro, dos coloridos “Dias de los Muertos” mexicanos, com suas caveiras doces e flores de cempasúchil, aos quietos passeios entre túmulos em uma manhã de novembro.
Aqui, na terra de Freire e Brennand, de maracatus e nações, a relação com os que atravessaram o véu é um capítulo à parte na geografia do luto. O pernambucano, forjado na resistência e na doçura, não se assusta com a morte; dialoga com ela. Nos arranjos de crisântemos que pontuam o Santo Amaro ou o Cemitério das Flores, há mais que ritual; há uma estética da memória. A limpeza dos mármores e o cuidado com os azulejos dos jazigos são um prolongamento do mesmo zelo que se tem pela fachada da casa, uma extensão doméstica do afeto. O cemitério, neste dia, não é um lugar de horror, mas um território de paz e de encontro. Ouvem-se sussurros, vê-se a mão que acaricia a foto no túmulo, o olhar que se perde no infinito, buscando um rosto amado. É o rito que dá forma ao caos do sentimento, e o sentimento que dá vida à fria liturgia do rito.
E no centro de tudo, habita a saudade. A saudade não é a simples lembrança; é a lembrança temperada com a dor da impossibilidade. É uma linguagem paradoxal que sobrevive à morte, um idioma que só se aprende quando se perde o seu interlocutor original. Ela é o eco de uma voz em uma sala vazia, a sombra de um gesto que não se repete. A saudade é a prova mais cabal de que o amor não se extingue com a última respiração. Ele se transforma, migra do tato para a memória, do abraço para a invocação.
Escrever sobre os mortos, neste 2 de novembro, não é um exercício de necrofilia. É, antes, uma declaração de que a vida é maior que o seu término. O que permanece, quando o corpo vira pó e o nome vira inscrição, é o que foi semeado no solo alheio: o exemplo, o amor, a lição, a história contada, o riso ecoado. A memória, quando bem escrita no livro de nossa alma, é uma forma de eternidade.
Que este 2 de novembro nos encontre, portanto, não cabisbaixos, mas em estado de escuta. Que cada um de nós, à sua maneira, visite não apenas um túmulo, mas a própria história. E que, no silêncio sagrado deste dia, possamos ouvir o sussurro tênue e perene daqueles que, tendo partido, seguem sendo a matéria de que somos feitos. Porque a maior homenagem não é chorar a partida, mas viver a herança.
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