Quando o corpo aprende a voar com os pés fincados no abismo. Por Flávio Chaves
Por Flávio Chaves – Jornalista, poeta, escritor e membro da Academia Pernambucana de Letras. Foi Delegado Federal/Minc – Aquele que já esteve do outro lado da pele, onde os nomes se dissolvem como sal na boca do tempo e só resta o sopro, sabe que o abismo não é ausência, mas espaço onde a alma aprende a respirar sem ilusão. Ele tocou o avesso da existência com dedos sangrados e olhos exaustos, e ali não encontrou apenas o frio do abandono, mas o calor exato da própria presença, uma brasa oculta que resistia sob o entulho. Caminhou por águas antigas, onde o tempo não era medida, mas pressentimento, sem farol à vista, guiado apenas por lampejos interiores, vestígios de uma infância quase nua, onde o impossível ainda era chão e as cicatrizes ainda não tinham nome. Construiu galés com as mãos cruas, sem gritos, sem alarde, movido apenas pela convicção muda de que estava vivo, e de que o ato de seguir, mesmo sem garantias, já era uma forma de eternidade.
Ele viu desabar os templos onde repousavam antigas crenças. Viu ruírem os altares de uma esperança esculpida em vidro fatigado. Libertou-se de presenças que pareciam eternas, deixou cair os papéis que antes encenavam a própria identidade e abandonou promessas que apenas decoravam o vazio. E ainda assim, seu coração, tambor antigo de rituais esquecidos, seguiu batendo entre as ruínas. Sua alma, desfiada como véu de luto ancestral, continuou entoando, mesmo na escuridão, um canto que só os que caminham sós compreendem. Já não esperava milagres. Caminhava com a firmeza dos que sabem que o caminho já está sob os pés, pois foram os próprios pés que o desenharam.
Não era mais conduzido por ventos alheios. O corpo havia decorado os trilhos. Os pés sabiam conversar com as pedras. O ritmo da respiração se harmonizava com o silêncio que existe no interior das árvores. Já não buscava sinalização exterior. Cada cicatriz havia se tornado um mapa. Cada queda, uma lição não verbal. Cada perda, uma janela aberta. Havia nele a presença serena de quem conhece o próprio território, mesmo que feito de ruínas, mesmo que habitado por fantasmas já reconhecidos e nomeados.
E se por vezes percebia em si uma certa contenção, um retraimento das exuberâncias antigas, isso não o diminuía, o intensificava. Era menos disponível para distrações, mais afinado com a substância. Menos atento ao aplauso, mais escutador do próprio silêncio. Era menos superfície, mais substância. Menos reflexo, mais fonte. E isso não era fraqueza: era precisão. Era síntese. Era núcleo. A exuberância havia se recolhido para dentro como uma fogueira que arde em brasa, e ali, no centro do seu ser, a luz não se apagava, apenas se aprofundava.
Sua liberdade não era feita de escolhas barulhentas, mas de permanência interior. Estava em pé, não porque alguém o sustentava, mas porque ele mesmo erguera seu eixo, pedra sobre pedra, tempo sobre tempo. Já não mendigava presença. Não ansiava por testemunhas. A própria respiração era suficiente. Seu canto existia, mesmo sem plateia. A música era íntima, mas inteira. A dança acontecia, mesmo que os olhos do mundo não vissem.
E o mundo, às vezes, passava por ele como quem passa por uma árvore antiga sem saber que ela carrega frutos secretos. Porque sua grandeza não reluzia, queimava. Não se exibia, emanava. Sua grandeza era subterrânea, feita de raízes profundas, de seiva lenta, de gestos não performáticos. Apenas quem tivesse olhos treinados pela dor e pela beleza seria capaz de enxergar. Havia nele um ser que não apenas havia atravessado o fogo, mas o integrara. Um ser que, mesmo marcado, guardara intacta a ternura. E isso era sua força.
Por isso, aquele que atravessou a dor com lucidez não se quebrou, se consagrou. Não se fez menor, tornou-se eterno. Criou raízes que descem até o centro do mundo. E quem tem raiz não desaparece, não recua, não desaba.
Cresce. Agudo e incandescido. Sempre.
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