A dança sobre a mesa e o colapso da dignidade política brasileira. Por Flávio Chaves
Um retrato da política que perdeu o senso do sagrado, a medida do decoro e o valor do exemplo.
Por Flávio Chaves – Jornalista, poeta, escritor e membro da Academia Pernambucana de Letras. Foi Delegado Federal/Minc – Dois vereadores de São Caetano do Sul, Caio Salgado (PL) e Professor Ródnei (PSD), foram filmados dançando sobre as mesas do plenário da Câmara Municipal após uma sessão solene em homenagem ao Dia da Pessoa Idosa. O vídeo, amplamente divulgado nas redes sociais, expõe muito mais do que um gesto irreverente: revela a fisionomia moral de uma época que perdeu a noção do sagrado e o respeito pelo espaço público.
O episódio, à primeira vista banal, é um símbolo do esvaziamento ético e intelectual da política contemporânea. O que se vê não são apenas dois homens dançando, é a metáfora perfeita de um poder que já não sabe distinguir entre o riso e o ridículo, entre o ato público e o espetáculo privado. O plenário, antes altar da palavra e da razão, tornou-se um palco de frivolidades, onde a seriedade republicana é substituída pela encenação populista e pela vaidade performática.
Desde os tempos das cavernas, a dança foi uma forma de celebração ritual. O homem primitivo dançava diante do fogo como quem dialoga com o mistério. Na origem, a dança era oração, agradecimento, invocação, um ato simbólico de comunhão com a vida e com o invisível.
Ver hoje representantes eleitos dançando sobre a mesa do Legislativo é, portanto, a degeneração desse gesto sagrado: a passagem do rito para a farsa, da comunhão para a exibição, do sagrado para o grotesco.
Platão já advertia, em A República, que “a degradação da cidade começa quando se corrompem as almas de seus governantes”.
Sócrates, ao pregar o domínio de si como virtude máxima, veria nessa cena a representação da alma desgovernada, que perdeu a noção do próprio papel. Schopenhauer chamaria o episódio de “vontade sem razão”, impulso cego, movido pelo desejo de aparecer, de se afirmar por meio do gesto. Nietzsche, que fez da dança um símbolo de leveza e superação, provavelmente se entristeceria ao vê-la convertida em expressão do vazio e da futilidade, uma dança sem espírito, sem sentido, sem altura.
O Império Romano também dançou antes de cair. Quando o Senado se transformou em palco de zombarias e o povo passou a exigir pão e circo em vez de virtude e dever, a ruína já era irreversível.
A história se repete, não pelos fatos, mas pelos símbolos: toda civilização começa a morrer quando o riso substitui o respeito e o espetáculo apaga a razão.
O filósofo espanhol Ortega y Gasset, em A Rebelião das Massas, já advertia que o homem médio, quando elevado a protagonista, destrói o que não compreende. Guy Debord, em A Sociedade do Espetáculo, mostrou que o poder moderno não governa mais pela ideia, mas pela imagem, e que a política se tornou uma sucessão de gestos encenados para a plateia. Byung-Chul Han, por sua vez, descreve nossa era como o tempo da “transparência do vazio”: todos se mostram, ninguém se representa; todos expõem, poucos refletem. Os vereadores de São Caetano, nesse sentido, são apenas atores involuntários de uma tragédia cultural maior, a da transformação da vida pública em entretenimento.
Nenhuma sindicância resolverá isso. A crise que se instalou entre a classe política é, antes de tudo, uma crise de sentido, uma erosão simbólica que corrói o fundamento moral das instituições. Quando o poder se torna espetáculo e o governante se comporta como artista de auditório, a república se desfigura. O que se perde não é apenas o decoro, é o espírito público, esse fio invisível que liga a autoridade ao serviço e a dignidade ao dever.
O problema, portanto, não é que dançaram. É onde dançaram, e o que isso revela. O riso que ecoou naquele plenário não é inocente: é o eco distante de uma civilização que, há muito, trocou o ideal pela imagem, a ética pela estética e a virtude pela vaidade.
E quando o riso substitui a razão, a política deixa de ser o espaço do bem comum para se tornar o espelho da nossa própria decadência.
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